03 set 2008 @ 6:17 PM 

Brasília, 03/09/2008 – Segue a íntegra do discurso feito hoje (03) pelo presidente nacional da OAB, Cezar Britto, durante a cerimônia de posse do presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha:

“Diante deste órgão do Poder Judiciário que se convencionou chamar de Tribunal da Cidadania, não posso deixar de falar da esperança, do sentimento, do querer e da certeza dos homens e das mulheres que o criaram no histórico dia 05 de outubro de 1988, quando se promulgou a Constituição Cidadã.

Tinham a inspirá-los os valores e fundamentos da democracia, que voltavam a predominar em nosso Continente Sul-americano, depois de duas décadas de autoritarismo, em que direitos e garantias individuais haviam sido violados sistematicamente.

Não apenas aqui, mas em todo o mundo havia sinais de que a democracia e seus valores se consolidavam, com o fim da Guerra Fria e o desmonte de regimes autoritários.

Eis, porém, que, a partir do 11 de setembro de 2001, tudo começou a mudar. A História, contestando os que afirmavam que acabara, passou a impor novos e complexos desafios. Os paradigmas começam a mudar – e para pior.

Já não são os paradigmas que atestaram a vitória da Democracia e que inspiraram a sexagenária Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Após a queda das Torres Gêmeas, um novo inimigo foi declarado, o terror fundamentalista. Contra ele, passou a valer tudo, inclusive a supressão de direitos civis elementares: direito de ampla defesa e devido processo legal, direito de ir e vir, direito à privacidade, direito de livre expressão.

Dentro dessa nova maneira de enxergar o mundo, as democracias que eram tidas como as mais avançadas do planeta regrediram e passaram a sustentar uma tese diabólica: de que os princípios, direitos e garantias fundamentais, conquistados com sangue, suor e lágrimas, ao longo da história da humanidade, atrapalham o combate ao crime.

A democracia já não seria eficaz para garantir segurança.

Em nome desse combate, não há limites: prisões clandestinas, tortura, seqüestros, dentro e fora dos países em que se encontram as vitimas. Violam-se direitos humanos e o princípio da soberania e auto-determinação dos povos, expressos na Carta das Nações Unidas, há mais de 60 anos.

Não mais se defende a dignidade da pessoa humana como razão de ser do Estado. A equação inverteu-se: prevalecem as razões de Estado sobre a cidadania, relativizando valores que se supunham intocáveis, como o princípio da presunção de inocência; o direito de defesa como fator de equilíbrio na relação processual; o processo justo, público, transparente.

Senhoras e Senhores

O terrorismo não aportou no Brasil, mas lamentavelmente importamos a crise de valores que dele resultou. Não obstante nossa Constituição ter revogado a lógica autoritária e policialesca, vemos com preocupação crescente ela se restabelecer.

Também aqui já se sustenta que a lei e o devido processo legal nem sempre favorecem o combate ao crime e que, em nome de uma suposta eficácia operacional, seria admissível – e até necessário – descumpri-los. Não se trata de um ponto de vista isolado, sem conseqüência prática.

Encontra vários adeptos nos aparelhos policiais, no Ministério Público e no próprio Judiciário. Recentemente, um magistrado chegou a sustentar que leis civilizadas só fazem sentido em países civilizados, excluindo desse rol o Brasil.

Ora, se o combate à barbárie se der com mais barbárie, então tudo estará barbarizado – e não haverá justiça. Estaremos abrindo mão de uma herança milenar da civilização.

O devido processo legal, base e fundamento do Estado democrático de Direito, é uma longa, lenta e penosa construção, de cujos benefícios, testados e atestados em séculos de história, não podemos abrir mão.

E isso não se restringe a esse ou aquele caso, mas a todos, sem exceção. Quando se colocam os direitos fundamentais como óbice ao combate ao crime, o triunfo é do crime, pois proclama-se a superioridade deste ao procedimento legal, admitindo-se por extensão a superioridade do mal em relação ao bem.

Nada mais perigoso. Nada mais trágico. E nada mais falso. Somente dentro das regras democráticas, observando-se os seus ritos e procedimentos, poderemos combater com eficácia o crime, em qualquer instância que se apresente – desde o mais prosaico delito até o mais sofisticado golpe do colarinho branco.

Nesse combate – repito – não pode haver qualquer distinção de procedimento em relação aos delinqüentes, sejam pobres ou ricos. A lei é para todos – e todos são iguais perante ela.

Senhoras e Senhores,

A sociedade brasileira elegeu, vinte anos atrás, o Poder Judiciário como antídoto ao autoritarismo. Dotou-o de atribuições mais vigorosas, rigorosas e resistentes.

Atribuiu-lhe prerrogativas vitais ao exercício livre da judicatura, munindo-o das condições necessárias para banir do país a lógica autoritária.

Por isso causa estranheza quando parte do próprio Poder Judiciário, ainda que de forma minoritária, apóie a tese de que as “leis civilizadas só fazem sentido em países civilizados” – e admita relativizar o seu cumprimento.

É essa lógica que faz do próprio Judiciário um dos avalistas da quebra dos princípios, direitos e garantias fundamentais.

O ataque comandado por setores da magistratura, do Ministério Público e da polícia à lei que tornou inviolável o direito de defesa, bem demonstra o que estou aqui a expor.

Pregava-se que o Estado pode investigar, denunciar, processar e julgar sem que o cidadão tivesse o direito de defesa. Felizmente não foram escutados – e a Lei 11.767, aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, foi, finalmente sancionada.

Achávamos que num país democrático sequer precisaria haver uma lei como essa. Achávamos que a Constituição-Cidadã já dava guarida à idéia de que a defesa é tão ou mais importante do que a acusação.

Mas num país que confunde tortura com crime político, anistia com amnésia e em que, para alguns, portaria de delegado vale mais do que a Constituição Federal, tudo se pode esperar – até mesmo que seja necessário ajuizar, como o fizemos recentemente, um pedido de edição de súmula vinculante para que os advogados tenham acesso aos autos.

Ainda insistem, em nosso país, que é possível a convivência da democracia com processos secretos e inacessíveis ao próprio investigado. Nem Kafka.

Há também setores do Poder Judiciário que aderem à tese de que eficiência do processo se mede pela quantidade de câmeras e holofotes que atraem.

Combate ao crime não é espetáculo televisivo, novela em que vale-tudo, embora o vale-tudo acabe não valendo nada, pois os excessos são reclamados nos tribunais e o réu, quando rico, passa à condição de vítima, dificultando ainda mais sua responsabilização penal.

De quebra, contribui para a consagração da máxima absurda de que a polícia é quem prende e o Judiciário é quem solta.

Outra anomalia diz respeito ao uso perdulário do grampo telefônico, que transformou o Brasil de Estado democrático de Direito em Estado de Bisbilhotagem.

É do Judiciário a responsabilidade final por essas autorizações, que, segundo avaliação de autoridades do próprio Estado, já colocam sob o império do grampo de dez a trinta milhões de cidadãos, como se criminosos fossem.

Pior: longe desses dados chocarem, geram o oposto. Instituições do Estado, criadas para proteger a cidadania, passam a competir entre si para saber quem grampeia mais, quem bisbilhota mais, numa gincana absurda, sustentada com os impostos do contribuinte.

Instala-se então a Grampolândia – e, com ela, um paradoxo: o guardião da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, mas o Guardião do Estado é uma engenhoca eletrônica de bisbilhotagem, disputadíssima pelo Ministério Público e polícias, em todas suas instâncias: Federal, Rodoviária, Civil.

É o Estado de Bisbilhotice permitido, cobiçado e estimulado, a provocar um dos mais graves ataques à República e à democracia de que temos notícia.

Há dias, o país foi surpreendido pela denuncia de que ninguém menos que o presidente de um dos Poderes da República – o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes -, foi grampeado.

O mais grave: acusa-se que o grampo teria sido de autoria da Agência Brasileira de Inteligência.

O Estado grampeando o Estado. A denúncia acrescenta ainda que o mesmo procedimento atingiu outras figuras eminentes da República: ministros, assessores da própria Presidência da República, parlamentares.

Confirma-se, assim, a advertência que fiz quando da posse do ministro Gilmar Mendes no STF, criticada naquela oportunidade pelos céticos de plantão. Ninguém está a salvo em tal ambiente.

A única diferença é que, na época, a ABIN ainda não tinha adquirido o seu próprio Guardião. Hoje, segundo o ministro da Defesa, já o tem, o que a faz exorbitar de sua missão institucional de órgão de inteligência para adentrar o campo da espionagem.

Desnecessário dizer da gravidade de tal fato, o que representa em termos de degradação, descrédito e perda de substância democrática.

É tão grave que exige das instituições providências corretivas imediatas: a adoção de um pacto em defesa dos princípios, direitos e garantias fundamentais.

O Executivo, com a exemplar responsabilização penal, administrativa e disciplinar dos autores.

O Legislativo, com a urgente aprovação de leis que proíbam o abuso de autoridade e a implantação do Estado de Bisbilhotice que ameaça a todos.

O Judiciário a adoção de medidas que restabeleçam o seu papel de guardião da Constituição Federal, sem descuidar da necessária atuação do CNJ.

Ministro César Asfor Rocha,

Esses são os desafios a enfrentar, os dilemas que o Poder Judiciário e o seu Tribunal da Cidadania precisam resolver. A História e o bom senso nos convidam a restabelecer a lógica democrática, mostrando que a Constituição é cidadã, não é estatal.

Se insistirem em sustentar que os princípios, direitos e garantias fundamentais atrapalham, então a Constituição Cidadã e toda a luta social que a precedeu estarão revogadas, o que seria um desastre.

Como se vê, os desafios são muitos. Para superá-los, é necessária a união de esforços.

É hora de superarmos conflitos, vaidades e a inútil discussão de quem é maior e melhor para o Brasil. Somos iguais e assim devemos tratar e ser tratados, na missão comum de defender intransigentemente o Estado Democrático de Direito.

Daí o nosso empenho para que Constituição seja observada não apenas em relação a questões de maior impacto público, mas também em questões que envolvem as nossas instituições, como é o caso do preenchimento de vaga destinada ao chamado Quinto Constitucional nesta Corte.

O Tribunal comandado por Vossa Excelência não pode ter sua composição desfalcada do representante da advocacia, do porta-voz da cidadania, do profissional estatutariamente comprometido com a defesa das instituições jurídicas, da Constituição e da democracia. Em suma, o profissional talhado para defender os tão atacados princípios, direitos e garantias fundamentais.

O STJ, que já reconheceu que os nomes indicados pela OAB preenchem os requisitos constitucionais necessários, não pode mais adiar essa decisão.

E Vossa Excelência, que aqui chegou por meio do Quinto Constitucional, tem agora a responsabilidade de não interromper a participação e a colaboração da advocacia na administração da Justiça.

Muito obrigado.”

Fonte: OAB

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Posted By: TFSN
Last Edit: 03 set 2008 @ 10:18 PM

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Categories: Diversos, Geral


 

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