24 maio 2012 @ 3:31 PM 

CRÔNICA: COISAS DA IDADE MÉDIA

* por Mário Cavalheiro Lisboa

Durante a Idade Média, com o falecimento de um senhor feudal, o feudo foi herdado por suas duas filhas, a Bondade e a Justiça. Quem deveria herdar o feudo seria apenas a filha primogênita. Mas a Bondade e a Justiça eram gêmeas. Em virtude das dificuldades do parto da mãe delas e de uma certa confusão decorrente disso, nunca se soubera com segurança quem havia nascido primeiro. Daí que ambas tiveram de dividir a administração do feudo e em conjunto aplicar o Direito. As coisas iam razoavelmente bem, até o dia em que passou pelo castelo um mago especialista em astrologia que proferiu uma palestra defendendo o direito penal mínimo e até a descriminalização de certas condutas. A Justiça, que tinha os pezinhos bem no chão, não se deixou influenciar por referidas posições. Mas, a Bondade ficou encantada com a novidade. A partir daí, tornou-se um tormento a aplicação da lei. Nunca mais houve unanimidade nas decisões. Enquanto a Justiça queria aplicar determinada pena aos delinqüentes, a Bondade defendia a aplicação de outra bem mais benevolente, envolvendo invariavelmente a pena mínima, a desconsideração da reincidência, a progressão de regime carcerário para delitos hediondos e outras criações que tais. E era boa de argumentos a Bondade. Após demoradas discussões, sempre em alto nível, prevalecia a pena intermediária, a qual resultava bem aquém do necessário para reprimir e prevenir delitos.

À noite, enquanto a Justiça dormia, a Bondade acendia uma vela e aprofundava-se nos estudos, a fim de criar novas teorias a favor dos delinqüentes. Usava de todo o engenho e arte para surpreender a Justiça com idéias inovadoras, causar-lhe perplexidade e disso tirar proveito por ocasião dos julgamentos.

E a Bondade tinha uma predileção especial pela execução da pena. Várias vezes por semana inspecionava o presídio, levando para os detentos quitutes produzidos pela cozinha do castelo. Tomava chá com os presos e emocionava-se com as mentiras por eles contadas. Para desespero da Justiça, a Bondade era pródiga no deferimento de saídas temporárias e concedia progressão de regime carcerário a quem não tinha direito.

A Bondade podia ser boa à vontade na aplicação do Direito, pois ela, seus parentes e amigos mais chegados, viviam dentro do castelo, o qual era rodeado de muros altos e protegido por um fosso de crocodilos. No castelo, era raríssima a ocorrência de crimes. A maioria dos vassalos no entanto vivia no campo, cultivando a terra, sem proteção policial alguma, sujeitos a serem vítimas de salteadores.

Uma vez postos em liberdade, os delinqüentes saíam de cabeça erguida e peito estufado, pois se haviam tornado amigos da Bondade. E, em sua volta ao meio de onde tinha vindo, alardeavam a todos o tratamento benigno que haviam tido desde o início do procedimento criminal até a soltura.

– Uma punição festiva- disse um dos celerados, esboçando largo sorriso.

Depois, estando junto apenas a companheiros de delinqüência, propôs:

– Vamos voltar às atividades rotineiras, amigos. Agora até com mais ousadia. Com a Bondade do nosso lado, não temos muito o que temer. Se um de nós for preso, a Bondade solta.

Em virtude disso, o índice de criminalidade do feudo aumentou vertiginosamente, trazendo insegurança generalizada, com reflexos na economia. Tornara-se perigoso um simples passeio até a taberna mais próxima, para beber ou jogar dados. As caravanas de mercadores que antes utilizavam as estradas do feudo, pagando pedágios e gastando nas hospedarias, passaram a viajar por outras terras. Referida situação foi uma verdadeira âncora a prender o feudo na Idade Média. Foi o último a ingressar na Renascença. E, apesar desse imenso prejuízo para a sociedade, a Bondade, por ser boa, sempre fora mais bem vista por todos que a Justiça.

Fonte: E-mail recebido

* Procurador do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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Posted By: TFSN
Last Edit: 24 maio 2012 @ 03:37 PM

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