Hodiernamente, existindo um conflito entre duas partes, o Direito impõe que para solucionar o conflito, salvo, ainda, raras convenções arbitrais, se deve acionar a figura do Estado.
Desta feita, o Estado, através do Poder Judiciário, terá que pronunciar a vontade do ordenamento jurídico vigente, em relação ao conflito, ou, ainda, impor o cumprimento das suas decisões ou da vontade das partes, expressando o caráter declaratório ou executório do provimento jurisdicional.
Mas nem sempre foi assim! Nos primórdios da civilização, não havia a figura do Estado com força suficiente para impor o Direito acima da vontade dos particulares. Logo, não existia o Poder Judiciário para garantir o cumprimento do Direito.
Nestes tempos longínquos, a solução dos conflitos era alcançada através da somatória das forças dos interessados, vencendo o mais forte. Quando acontecia um crime, a repreensão se fazia através de vingança privada. Era o conhecido “olho por olho, dente por dente”.
Numa história mais recente, ainda ábdia, após este período de ausência total de jurisdição, o Estado avocou o jus punitionis (direito de punir), exercendo, inicialmente, e através de seus próprios critérios de avaliação, sem um juiz distinto, de forma impositiva e à sua conveniência. Nesta fase inexistiam decisões calcadas nas leis, quanto menos decisões imparciais. É o que se denomina autotutela, ou exercício do direito pelas próprias mãos, caracterizada, essencialmente, pela ausência de um juiz imparcial e da imposição de vontade da parte mais forte.
Com o passar do tempo, a sociedade foi observando que o regime de autotutela não funcionava adequadamente, pois, obviamente, tendia a injustiças, assim, buscou-se estabelecer pessoas neutras (árbitros) para dirimir os conflitos. Inicialmente, tal função era confiada aos sacerdotes que faziam prevalecer a vontade dos Deuses, surgindo, assim, a figura do juiz.
Nesta fase, ainda, as decisões eram tomadas de acordo com os costumes, ou intuição do julgador, pois não existia a legislação positivada.
Entretanto, na medida em que a figura do Estado vai tomando consistência, começam a surgir as primeiras leis, e, por conseqüência, o particular procura-o para ver solucionada sua pretensão, ou lhe confiar o direito de punir. O Estado adquire força.
Em Roma antiga, na época da Lei das XII Tábuas, num primeiro momento, os patrícios levavam as questões para os pretores decidirem, comprometendo-se a aceitar a decisão como certeza (in jure). Erige-se a força do Estado, diante da solução dos conflitos.
Contudo, diante de toda essa evolução do Direito frente ao exercício da justiça com as próprias mãos, que durou milênios, a sociedade atual ainda mantém o instituto autotutela.
Em casos específicos do Direito internacional, como, por exemplo, a invasão de países por meio de artefatos militares (invasão do Iraque), ou por intermédio de bloqueio econômico, como ocorre em Cuba. Situações, onde, nitidamente, ocorre a solução de conflito de interesses mediante o uso da força, sem a mediação de uma parte neutra. Ocorre, também, em regimes de exceção, ou ditatoriais.
Por seu turno, o Direito brasileiro, em situações excepcionais, descritas na lei, admite o exercício da autotutela.
Na esfera do Direito Civil, mesmo com a evolução do Código Civil de 2002, o qual restringiu as possibilidades da autotutela, é possível encontrar tal figura no direito de preservação da posse quando agredida (turbada ou esbulhada), conforme o art. 1210 do Código Civil, o qual garante o direito do possuidor manter-se ou restituir-se pela própria força.
Contudo, vê-se, nitidamente, nessa matéria do Direito, a intenção do legislador em diminuir as possibilidades do agente (jurisdicionado) fazer justiça com as próprias mãos. O Código Civil anterior, de 1916, em seu art. 558, por exemplo, garantia ao proprietário de um terreno invadido, cortar as raízes e ramos de árvores do terreno vizinho, até o plano divisório.
Na esfera administrativa, percebe-se, igualmente, a autotutela, em caráter auto-executável das decisões, ou seja, não precisa da ação do Poder Judiciário para conferir-lhe validade, ressalvado o direito deste último em corrigir eventuais abusos, através do remédio constitucional do Mandado de Segurança, ou medidas cautelares pertinentes.
Na figura do Direito penal pátrio, a autotutela é mais comum. A própria possibilidade da prisão em flagrante, conferida pelo art. 301 do Código de Processo Penal Brasileiro, exercida pela autoridade policial quando manda prender o infrator da lei, configura a autotutela, pois, num primeiro momento, independe do Judiciário, isto é, prescinde da atuação da figura do juiz. Daí, muitas vezes, observam-se abusos que são corrigidos pelo Poder Judiciário, quando acionado.
Qualquer pessoa que incorrer ou estar na eminência de sofrer mal injusto e grave, pode socorrer-se da legítima defesa (art. 25 do Código Penal Brasileiro), exemplo clássico de autotutela, ou justiça com as próprias mãos, garantida por lei, que confia o Direito a qualquer pessoa de não ser incriminada quando praticar o fato, dentro de certos limites, em defesa de sua integridade física (e até moral) ou de terceiros.
Com menos freqüência, também, ocorre a autotutela quando qualquer pessoa encontrar-se em estado de necessidade (art. 24 do Código Penal Brasileiro), ou seja, quem pratica o fato para salvar-se de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar. É a típica situação de escolher a própria vida ou a alheia.
A autotutela revela-se, de igual modo, naqueles que cometem o fato punível em estrito cumprimento do dever legal, ou exercício regular do direito, (art. 23,III do código Penal Brasileiro), são situações específicas, dentro de certos limites estabelecidos pela legislação extravagante e a jurisprudência. Por exemplo, intervenções cirúrgicas, com objetivo de salvar vida, sem êxito; violência esportiva, restrita às regras do evento.
O Direito brasileiro, sob influência do Direito europeu, permite tais condutas unilaterais, tendo em vista a impossibilidade de o provimento jurisdicional estar presente no momento ou na iminência da violação de um Direito, ou mesmo para evitar o seu perecimento, em face da ausência de confiança do jurisdicionado no altruísmo alheio.
Por outro lado, quando a autotutela é exercida fora dos limites estabelecidos pela lei, o fato é definido como crime contra a Administração da Justiça. É o exercício arbitrário das próprias razões, definido no art. 345 do Código Penal Brasileiro, o qual pune todos aqueles que fizerem justiça com as próprias mãos, para satisfazer pretensão, ainda que legítima, mas não amparada, ainda, pela justiça (Poder Judiciário). É o que ocorre com quem toma bens do devedor para satisfazer crédito próprio, sem ordem judicial.
Vê-se, também, a autotutela, nas “milícias” do Rio de Janeiro, que concorrem com as autoridades públicas, sem o necessário respaldo legal. Nesta situação, os integrantes estão sujeitos às penas do referido artigo, acrescidas das penas de outros crimes que eventualmente cometerem.
Cabe observar que sequer o próprio Estado, na figura de seus agentes públicos, está livre de penalidade, quando ocorrer abusos ou excessos na manutenção do poder, ou no exercício da autotutela, conforme dispõe a lei 4.898/65, que define os crimes de abuso de autoridade. É o que se noticiou recentemente no Estado do Pará, com a reclusão da menina menor de idade L., na delegacia de Abaetetuba, em uma cela exclusiva de homens, diga-se, maiores de idade.
A evolução do Direito, portanto, parece não ter sido suficiente para acabar, em absoluto, com o exercício da autotutela. A tendência legislativa, com a evolução da sociedade, é restringi-la ao máximo e aumentar a punição do particular ou do agente do Estado que fizer justiça com as próprias mãos.
* Sergio Sarrecchia. Artigo atualizado. (original escrito em meados do ano de 2001)
Fonte: HSN